Medicina: sobre cadeiras amarradas

Em 1970, uma médica, no seu oitavo mês de gestação, estava de plantão numa sala de Emergência, quando, de madrugada, atendeu uma criança cujo diagnóstico era de pneumonia grave. Enquanto providenciava o uso de oxigênio e a aplicação de antibiótico, informou ao pai da criança de que havia risco de morte. A reação dele foi instantânea. Colocou a mão pesada sobre o ombro dela, girando-a lateralmente e falando com olhos fixos na sua barriga: “Vou dar uma pesada nessa barriga para a senhora sentir como é ver seu filho morrer sem precisão”.

Na hora, a médica e o pai da criança ficaram “sem terra nos pés”, pelo fato de, num breve instante, instalar-se em ambos uma enorme desesperança, das que levam alguém ao desespero extremo, que é capaz de gerar atitudes desumanas.

Depois se soube que aquele pai vinha do dia anterior tentando um atendimento para seu filho, mas queria muito mais uma palavra atenta sobre a doença.

Naquela década não havia segurança. Eram os tempos ditatoriais: valiam somente normas a serem seguidas. Amarravam-se então cadeiras e mais cadeiras, numa atitude simbólica do imprimir intimidação, diferença de status social e talvez promover alguma segurança em favor dessa diferença.

A estrutura social contemporânea é de amarra para todos. Os médicos, cuja maioria vem da elite que não é muito afeita a solidarizar-se com classes menos favorecidas, dificilmente se desamarram de suas cadeiras, às vezes de espaldar alto. Há evidências de que vivemos cada vez mais inquiridos pela crise de valores atuais, sejam éticos ou sociais ou outros, que somados dão uma estruturação comportamental muitas vezes distorcida, como a revolta do pai da criança pneumônica, ou a aceitação de cadeiras amarradas por parte de alguns médicos e profissionais de todas as categorias.

Para desmontar as estruturas, são necessárias prementes e permanentes atitudes na busca do aprimoramento das relações humanas, sejam médico/paciente ou cliente/profissional. Observe a palavra de Álvaro Madeiro Leite, pronunciada no colóquio, Humanidades Médicas, em outubro de 2013: “A Medicina talvez seja a profissão que requer mais instantaneamente uma dimensão a temporal, a-histórica do homem: quem sente ou vê o chão se esvair por franca ameaça de uma doença sempre desejará encontrar a proximidade do olhar, da escuta, dos bons gestos de um médico. Os desejáveis gestos!!! Um médico de sempre. ‘Está nas mãos do médico’ muitas vezes representa a esperança, o sopro da vida.”

Que desamarrem-se as cadeiras por meio de reflexões. Que larguem-se as condenações, por causa de cadeiras amarradas, e se mergulhe no por que ainda se amarram cadeiras. O Conscientização de Paulo Freire poderá oferecer um passo nos caminhos que levam aonde se deseja chegar: vendo e escutando o outro, com muito gosto, e vice-versa, sentados em cadeiras pareadas.


Dra. Márcia Alcantara Holanda

Médica Pneumologista
Coordenadora da Comissão de Asma da SCPT
pulmocentermar@gmail.com

 

 

 

 

Fonte: O povo Online

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