Velhice: dos grilhões, à liberdade radical

Faltava pouco para eu completar oitenta anos quando, de supetão, ao precisar prescrever um medicamento de uso frequente, um vácuo abismal abriu-se no meu cérebro: o nome do remédio, sumiu. Por mais que eu recordasse sua forma, cor da embalagem, nada. O nome tornara-se inencontrável.

Somente clandestinamente, numa visita ao Google consegui resgatá-lo. O  constrangimento por tamanha falha mental sacudiu meu ser. Era a velhice chegando. sem cerimônia, pensei.

Veio sem aviso, abalando minha segurança profissional, trazendo consigo o peso das regras da sociedade ocidental: ser velha é ser improdutiva, dependente, apagada, cercada de perdas das funções, de papéis sociais e da jovialidade.

                Desembarcaram em mim as limitações corporais: a força da juventude, a flexibilidade, o equilíbrio, e a digestão estavam comprometidas; o cansaço vinha fácil, meu raciocínio tornara- se langoroso, a audição reduziu-se: confundia as palavras. A visão desfocava exigia óculos especiais. Carregava cinco doenças crônicas e dois vícios controlados, mas foi a memória que mais me intrigou.

Decidi: preciso compreender essa tal velhice.

Visitei algumas obras clássicas sobre o assunto. Simone de Beauvoir, em A Velhice, afirma que a civilização ocidental, marginaliza os velhos e os excluíam socialmente tal qual num exílio. O velho é, para muitos, sempre “o outro”, diz ela.

Cadê a liberdade então?

Merleau-Ponty afirma que o corpo é nossa base no mundo, e que não existimos fora dele.

Assim, na perspectiva de Beauvoir e Ponty, o corpo é a condição essencial da existência— nele se encontram tanto as potências (je peux, “eu posso”) quanto as limitações (Domingues & Freitas, 2019).

Aí, como velha fiquei sem saber bem quem eu era. Apliquei-me então um escrutínio. Sobre a minha vida, refleti sobre o passado. Essas reflexões mostram como fomos, somos e estamos. De peito aberto, pode-se dizer: – Pronto. Larguei o passado. Sou livre na minha velhice, mas como se declarar livre com tantos limites corporais?

               A liberdade antes de tais limitações, era cerceada pelas obrigações impostas da infância à velhice pela disciplina familiar, escolar, no trabalho, e social. Agora, na velhice, não: sou eu quem faz minha vida livre — equacionando minhas limitações corporais e de frente para elas, existindo: fazendo o que desejo, quando, como quero e posso. Se desejar, posso até, aos oitenta e quatro, vestir um bikini e ir mergulhar nas águas tépidas do mar da minha cidade, e se a felicidade me visitar, por exemplo, coloco-a no colo e sinto-a plenamente, do meu modo. A isso chamo liberdade radical. Ou velhice plena. Mesmo que se considere o corpo velho como algo inviável — como diria Sartre — afirmo: ele é viável naquilo que consente ser.  Nele me incluo livre, consentindo radicalmente o que a ele couber. Da impossibilidade ao possível. Do vácuo cerebral às viagens pela internet. Sou velha e limitada, sim, mas radicalmente livre.

 

Edição Impressa

FORTALEZA – CEARÁ – 10 DE AGOSTO DE 2025 – Tipo Notícia Por Márcia Alcântara (Ciência e Saúde) 

Fonte: https://edicao.opovo.com.br/

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MÁRCIA ALCÂNTARA
MÉDICA E ESCRITORA
Coordenadora do Programa de Reabilitação Pulmonar do Pulmocenter
pulmocentermar@gmail.com

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