Quando Rita leu o título deste artigo — como quase sempre faz — entrou na cozinha falando, sem sequer dar bom dia:

— Ainda bem que você largou o romantismo com que trata a velhice! Fale das desgraças que se abatem sobre os velhos, especialmente os do século XX e XXII.
Respondi:
— Não romantizo, Rita. Mostro o descompasso do corpo velho com as exigências do viver, e como é possível ajustar caminhos, vontade e esforço para sentir a vida plena, mesmo com as grandes limitações que os velhos detêm.
Rita riu, duvidando. Continuei:
— Encontrei respaldo para tocar nas desgraças dos velhos no podcast da historiadora Mary Del Priore, comentando seu livro Uma história da velhice no Brasil. Nele, Clarice Lispector aparece referenciada com a brutal lucidez que sempre teve.
Em Feliz Aniversário (conto de 1960), Clarice mostra Dona Anita, de 89 anos, cercada de filhos e netos que celebram sua data sem afeto, sufocando-a entre compaixão e descaso. A desgraça é social: o abandono, a perda de sentido, o corpo que não se impõe e a palavra que não ecoa.
Rita andava pela sala:
— Dona Anita parece ser de classe média alta. E os velhos pobres?
— Clarice também os retratou — respondi — em Viagem a Petrópolis. A octogenária Dona Margarida, rejeitada e sem renda, vai de casa em casa, sustentada por favores. Invisível, sem lugar no mundo.
Essa exclusão extrema é retomada, de modo fantástico, no filme O Último Azul. Nele, os idosos são obrigados à aposentadoria aos 78 anos e deportados para um exílio forçado, onde se tornam invisíveis e inviáveis — expulsos do direito de sonhar ou trabalhar.
Rita sentou-se, pensativa:
— E pior: cresce o pânico diante da velhice. Às vezes vira ódio contra tudo o que lembra envelhecer. Os séculos XX e XXI desembocaram em buscas frenéticas pelo rejuvenescimento, hoje sem limites — das cirurgias plásticas a procedimentos arriscados e extremos, como mostra o filme A Substância (2024).
Assenti. O preconceito está embutido nas exigências de beleza e produtividade. A OMS aponta que um em cada dois idosos sofre discriminação etária.
Rita, provocadora, insistiu:
— E ainda vai romantizar essa velhice?
Sorri:
— Vou continuar afirmando, com Sartre, que a liberdade está sempre disponível. E com Nietzsche, que em A Gaia Ciência nos convida a dizer “sim” à vida, mesmo nas dores. O ser livre transforma o sofrimento em criação: jardina, escreve, dança, reinventa-se.
Rita ficou em silêncio. Conclui
— A velhice não é desgraça quando a consciência desperta para a liberdade que se alcançou, mesmo diante de limites e da finitude. O corpo pode fraquejar, mas o espírito aprende a dançar — leve, mesmo sobre o fio que limita o chão do abismo.
Edição Impressa
Publicado 01:00 | out. 12, 2025 Tipo Análise Por Márcia Alcântara (Ciência e Saúde)
Fonte: https://edicao.opovo.com.br/

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MÁRCIA ALCÂNTARA
MÉDICA E ESCRITORA
Coordenadora do Programa de Reabilitação Pulmonar do Pulmocenter
pulmocentermar@gmail.com