A finitude descortina a exuberância da velhice

 Tipo Análise Por Márcia Alcântara

Aos 80 anos, depois de cinquenta dedicados à pneumologia, minha velhice não chegou de mansinho: revelou-se de supetão. Atendia um paciente quando a palavra “dipirona”, companheira por meio século, fugiu vertiginosamente da minha memória. Não era falha grave; era um sinal íntimo, uma fresta por onde entrou a consciência da finitude. De súbito, vi a linha reta do mar da Beira Mar — horizonte antigo, mas nunca tão nítido quanto naquele instante, quando se revelou, para mim, como a própria finitude.

 

Foto: carlus campos

Foi aí que compreendi, sem dor, que meu périplo médico se encerrara. Minha amada pneumologia tinha cumprido sua estada em mim. Ficaram as lembranças luminosas do ser médica responsável por vidas que confiaram nos meus cuidados. Mas o que me surpreendeu foi descobrir que a finitude não me encolheu; ela me ampliou. Pela primeira vez senti que podia tomar posse da minha própria vida, sem as pressas, obrigações e tolhimentos que me acompanharam desde a infância.

Ao contrário do que imaginaram Sartre e Beauvoir, ao tratarem a velhice como inviável, percebi que o corpo velho não sela interditos. Apesar das impossibilidades próprias da idade, ele revela contornos: mostra limites, sim, mas também indica por onde ainda posso caminhar, reinventar-me e desejar. Descobri que as limitações não são prisões — são molduras que tornam mais nítida a obra que ainda posso ser. O que se torna inviável pelas limitações da idade cede lugar a novos caminhos possíveis. Como disse Drauzio Varela, ao comentar a interrupção de uma maratona que corria na Alemanha: “Não vou parar de correr. Se não der para fazer todo o percurso, correrei poucos quilômetros — ou até alguns metros. É o poder do querer e do gostar.”

Mas a exuberância da velhice não nasce só do indivíduo. Como lembra Beauvoir, ninguém envelhece sozinho: é a sociedade que pode fazer da velhice um tempo digno ou miserável. Para que a liberdade dos velhos floresça, o mundo precisa reconhecer sua presença, acolher seus ritmos e valorizar suas contribuições. Nietzsche dizia que a vida deve ser vivida como obra de arte; mas, para que essa obra exista, é preciso um espaço social que a veja e a escute.

Quando a sociedade nos empurra para a invisibilidade, a velhice se apequena. Quando nos integra ao cotidiano, ela se expande. A velhice exuberante depende, portanto, de cidades, Estados e países que ofereçam programas de assistência à saúde dos velhos, que viabilizem participação, cuidados, circulação segura e afeto. Que criem um ambiente que permita ao velho ser um ser-em-projeto, como quis Sartre, ainda que com outros tempos e formas.

finitude, para mim, foi acontecimento inaugural. Descortinou não só um fim, mas um novo modo de começar. E é nele que sigo: limitada, sim — mas inteira na lucidez e na consciência de que meu envelhecer só se cumprirá plenamente quando a sociedade reconhecer que a velhice não é resto: é potência.

Edição Impressa

 Tipo Análise Por Márcia Alcântara (Ciência e Saúde) 

Fonte: https://edicao.opovo.com.br/

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MÁRCIA ALCÂNTARA
MÉDICA E ESCRITORA
Coordenadora do Programa de Reabilitação Pulmonar do Pulmocenter
pulmocentermar@gmail.com

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Márcia Alcântara: O alvará de Deus

Há, atualmente, uma onda tsunâmica, de pedidos da ajuda de Deus, apelando a Ele por quase tudo: desde a cessação de dor de uma unha encravada, à conquista pelo Brasil da Copa ou a vitória nas últimas eleições

Na Wikipédia, alvará é documento, ou declaração governamental que nos libera a praticar atos, de caráter jurídico, como o alvará de soltura que liberta um preso da cadeia. O desse artigo, é metafórico, originário da Bíblia, pois Deus declarou: “Podes escolher segundo tua vontade, pois te é dado” (Moisés 3:17).

Deus nos deu o que seria nosso livre arbítrio, para nossas escolhas pessoais, sendo assim capazes de nos auto cuidarmos em todos os sentidos. Por que pedir quase tudo a Ele? De problema pessoal ou coletivo, pequenas e grandes dificuldades, passa-se a Deus: “Ponho tudo da vida nas mãos de Deus”. Diz-se comumente.

Se Ele nos deu poderosíssimas ferramentas na criação (Genesis 1): corpo, mente, inteligência e consciência, para vivermos como queiramos, que descubramos e percorramos nossos caminhos, vencendo por nós mesmos todos os obstáculos que surjam ao nosso viver.

Há, atualmente, uma onda tsunâmica, de pedidos da ajuda de Deus, apelando a Ele por quase tudo: desde a cessação de dor de uma unha encravada, à vitória do Brasil na Copa, ou a vencer as últimas eleições, e ao perdê-las, quererem anulá-las, inconformados, a ajoelharem-se nas portas dos quartéis, pedindo a Deus um golpe militar.

Pior ainda, é ter Deus acima de todos, João 3:31: “Quem vem das alturas está acima de todos”, usado e aclamado slogan governamental brasileiro, pelo mandatário do País, promovendo práticas das mais desumanas: permitiu mortes de mais de seiscentos mil brasileiros receitando remédios ineficazes contra a Covid-19, disseminou a doença mortal pela recomendação de não usar máscara, muito menos se vacinar, permitiu destruição maciça da natureza florestal amazônica! Tudo em nome de Deus acima de todos.

Nesse contexto, lesa-se claramente o segundo mandamento de Deus (Êxodo -20:7): “Não tomar o Santo nome de Deus em vão”, sem escrúpulo nenhum, e ainda se dizem crentes em Deus. O ideal é deixar Deus no Seu descanso a fim de conduzir a humanidade por Suas leis e até admitindo as de Darwin usando: do nosso corpo, a força, da mente, o equilíbrio, da inteligência, a cognição e o raciocínio lógico, até nossa consciência.

Não precisamos pedir nada a Deus. Ele já nos deu o alvará para vivermos como queiramos, sem nos escudarmos em Sua Grandeza

Márcia Alcântara
Articulista

Fonte: https://mais.opovo.com.br/jornal/opiniao/2022/12/16/marcia-alcantara-o-alvara-de-deus.html

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Márcia Alcântara: A pira e o pódio das vacinas

Por Márcia Alcântara

No Dia de Finados, o arcebispo do Rio, Dom Orani João Tempesta, rezou por mortos pela Covid-19 e acendeu uma pira, que só será apagada quando houver uma vacina contra a doença e a chamou de: “Chama da Esperança” (O Globo 2/11/2020), num apelo claro à ajuda divina para se ter uma vacina que vença a prova da segurança e eficácia contra o Sars-CoV-2.

O significado de pira diz que é local em que se submete algo à prova. A “Chama da Esperança” seria então para a chegada de uma vacina que, submetida às provas, seja segura e eficaz aos brasileiros contra essa doença.

Entretanto, a pira do Rio pode também evocar a corrida dos candidatos ao “pódio” – aqui representado pelo Palácio do Planalto, nas eleições de 2022. Para esse feito não se requer preparo olímpico, nem cientistas ou laboratórios, mas sim um linguajar e ações de uma mediocridade e ludíbrios desabonadores para com os reais valores das vacinas em produção no Brasil. Na corrida torpe, há quem se deixe fotografar elevando a vacina chinesa como um troféu, como fez João Dória – governador de São Paulo (16/10/2020 – Gazeta de São Paulo) e há o presidente Jair Bolsonaro que imprime uma onda de insegurança quanto ao real valor que será se vacinar, declarando não ser obrigatória e dizendo em entrevista à Rádio Jovem Pan,( 21/10/2020), que: “A da China, nós não compraremos, é decisão minha”. Com isso, o conflito já se instalou nas pessoas e, certamente, levará às baixas adesões ao programa vacinal, consequentemente, menor controle da disseminação da Covid-19.

Gerar conflitos fantasiosos, tornando os brasileiros ainda mais vulneráveis à pandemia, tem sido tarefa primordial do nosso presidente: era uma vez a cloroquina e agora tenta minar a vacina chinesa. Não conseguirá porque, felizmente, temos no Brasil quem garanta aos brasileiros a segurança no uso dos imunobiológicos (vacinas) que são: os institutos: Butantan e Bio-Manguinhos – Fiocruz, que produzem todas as vacinas do Programa Nacional de Imunização do SUS – Ministério da Saúde (PNI-MS) e que recebem o selo de segurança e eficácia da Anvisa. Vamos então, arcebispo Dom Orani, entregar a “Chama da Esperança” às instituições que garantirão ao povo, a proteção certa de que precisa, contra a Covid-19. A pira e o pódio provavelmente serão delas.

Dra. Márcia Alcântara Holanda
Médica pneumologista; coordenadora do Pulmocenter;
Membro da Academia Cearense de Medicina
pulmocentermar@gmail.com

Fonte: O Povo

Médica Pneumologista e membro da Academia Cearense de Medicina

Publicado no O POVO Mais DE 10/11/2020

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Márcia Alcântara Holanda: Asma: “Morte zero em 2020”

Por Márcia Alcântara Holanda

Márcia alcântara Holanda Médica Pneumologista e membro da Academia Cearense de Medicina

Fernanda Young, escritora, roteirista, atriz, portadora de asma, morreu em crise da doença, seguida de parada cardíaca, na madrugada do domingo, dia 25/08/2019. A crise se deu no sítio da família, em Gonçalves, sul de Minas, para onde tinha ido, a fim de descanso de fim de semana, e leitura de textos, em fase de preparação da peça: “Ainda nada de novo”, que estrearia em São Paulo, no dia 12 de setembro próximo.

Já temos as ferramentas para o controle de mais de 95% das asmas. Por que, então, se morre da doença? Resposta: não se deveria, entretanto, a doença é complexa, tem cunho genético, mais de 80% é de fundo alérgico, sendo causada por mofos, poeiras, epitélio e saliva de cão e gato, baratas, exercícios físicos, situações de estresse, infecções respiratórias, mudanças climáticas e outras mais. Um simples joguinho de futebol de salão pode matar um asmático se antes do jogo não houver usado o medicamento preventivo. A asma costuma ser traiçoeira se não cuidada devidamente. O diagnóstico correto e tratamento adequado controlam a doença. Os medicamentos disponíveis no SUS são capazes de controlar quase todos os tipos. As crises são imprevisíveis e, às vezes, fatais.

Fortaleza tem o Programa de Atenção Integral à Criança e Adulto com Asma de Fortaleza (Proaica), que conta com mais 3.000 profissionais habilitados, voluntariamente, para controlar a asma dos fortalezenses, que entre 2013 e 2018 reduziu em mais de 50% as mortes por asma na Capital (Datasus 2018). A meta é: “Morte zero em 2020”. São atualmente 9.000 asmáticos diagnosticados e tratados, utilizando a educação para alertá-los sobre a identificação dos fatores de risco que levam à morte. O uso correto dos medicamentos e não deixar de tê-los ao alcance são fatores apregoados pelos profissionais do Proaica. Deixo aqui a frase que mais uso para alertar os pacientes da necessidade de ter sua asma sob controle: “Carregue junto a si suas bombinhas prescritas pelo médico, use-as sempre que necessário, sem medo, até o fim dos seus tempos, e não morrerá de asma”.

Fonte: O povo

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Telemedicina, da cadeira ao WhatsApp

Admiro a abordagem que os organizadores do livro: “Você pode me ouvir, doutor? – Cartas para quem escolheu ser médico”, de Álvaro Leite e João Macedo, porque de modo abrangente e sensível, fala do problema que é a relação médico-paciente. Hoje desgastada pela rapidez com que se impõe as consultas médicas das instituições pública e planos de saúde.

A Telemedicina atende bem ao que o livro nos ensina, e muito mais. Entretanto, é desconcertante o vozerio que as entidades de classe produzem contra esse meio de comunicação que aproxima mais o médico do paciente.

Constatei isso na minha vivência, e cito o exemplo de uma paciente que mora nas proximidades do açude Arneiroz e que é portadora de asma grave. Há um mês veio daquele local para Fortaleza em forte crise, sofrendo muito durante a viagem, para uma consulta presencial. Aqui, resolveu-se a crise, realizou-se espirometria, confirmou-se o diagnóstico e uma receita lhe foi dada com a instrução de manter contato permanente via WhatsApp, inclusive de exibir vídeos a fim de se ver daqui, como estava a respiração, saturação de oxigênio, até os sintomas desaparecerem. Além disso, passei a conhecer sua família. Verifiquei o uso correto dos medicamentos inalatórios para controle das crises. Até o ambiente de casa pôde ser avaliado e controlado.

Essa experiência tem servido para acompanhar as evoluções de outras doenças, tanto nos que vem do interior, como nos da Capital.

A satisfação desses pacientes é enorme e a relação entre nós favorece a sensação de segurança da minha parte, e da deles, pois já confessaram algumas vezes que se sentem assim. Um amigo cirurgião já colaborou na realização de um complicado ato cirúrgico à distância.

Não há, então, porque não utilizar na Medicina as novas tecnologias de agora e do futuro: consultas à distância, uso da inteligência artificial nos procedimentos invasivos ou não, e no fortalecimento da relação médico-paciente. E mais: é premente que se adote a Telemedicina no currículo dos futuros médicos

DraMarcia

Dra. Márcia Alcantara Holanda
Médica pneumologista; coordenadora do Pulmocenter; membro da Academia Cearense de Medicina
pulmocentermar@gmail.com
FonteO povo

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